O PROBLEMA DE NASCER | Vivendo por meio de memórias (Crítica) - 44ª Mostra SP
O futuro próximo se parece muito com o presente explorado em O Problema de Nascer (The Trouble with Being Born) da diretora Sandra Wollner, só que mais sombrio e solitário. Essa sensação de isolamento é transmitida desde o início e logo de cara flutuamos por uma floresta com insetos zumbindo e depois encontramos um pai e uma filha pequena ao lado de uma piscina no quintal.
O que parece ser um dia relaxante rapidamente se torna em um momento que se parece forçado, ou até mesmo ensaiado. Enquanto a menina (Lena Watson) fica à beira da piscina, o pai (Dominik Warta) vai para dentro, apenas para sair correndo quando vê a menina chamada Elli flutuando sem vida na água.
Estranhamente ele não se importa, mas logo percebemos que Elli é uma androide, cujos olhos negros profundos e pele lisa como cera evocam uma misteriosa inexpressividade. Ela foi construída para reproduzir a filha do pai, que desapareceu 10 anos antes. Suas reações são lentas e educadas, como se ela estivesse tentando descobrir um bug em sua programação, em vez de brincar como uma criança humana de 10 anos.
Mesmo que suas ações sejam em sua maioria definidas em um loop construído a partir de fragmentos do que o pai lembra de sua filha, Elli parece ter uma abordagem mesclada e combinada com essas memórias implantadas, obcecada como uma amnésica tentando entender um passado.
O Problema de Nascer (The Trouble with Being Born) é um filme que lentamente puxa para dentro e a estrutura nos passa um olhar desconfortável, enquanto Elli e o homem que ela chama de ‘papai’ compartilham alguns momentos cada vez mais íntimos e inadequados. Em um dos momentos de terror corporal mais enjoativos já filmados, o pai remove a língua e a vagina de Elli para limpar, deixando-a nua no balcão. É um momento extremamente nojento, apontando não apenas para o abuso que ele sujeitou a sua filha humana, mas o desdém casual com que ele considera sua substituição.
O longa acaba tendo uma boa reviravolta quando Elli foge e a história muda para outra relação. Elli é apanhada por um motorista (Simon Hatzl) que a presenteia como um novo brinquedo para sua mãe idosa (Ingrid Burkhard), que ainda está de luto pelo irmãozinho que ela havia perdido 60 anos antes.
O cenário mais humano que a personagem acaba explorando na segunda metade do filme nos mostra que a visão de Wollner não é centralizar os sentimentos em Elli, mas demonstrar que as pessoas que ela encontra possuem memórias que são refletidas na androide como um espelho e essas memórias se afogam em suas próprias histórias como uma liberação da realidade em que não desejam viver.
No final, percebemos que Elli é uma fuga para essas almas errantes e o fato do enredo ter escolhido almas problemáticas com histórias problemáticas acaba tornando o filme bem interessante, mesmo que também nos afaste deliberadamente em uma direção que nossas memórias não preferem seguir.
*Filme assistido na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, para mais detalhes, acesse: https://44.mostra.org/
Trailer:
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