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O CHARLATÃO | A fama em cima da boa fé (Crítica) - 44° Mostra SP

Uma das figuras mais obscuras da história da Tchecoslováquia no século 20 é Jan Mikolášek, um autoproclamado especialista em ervas que olhava para garrafas de urina e prescrevia chá de ervas para curar todos os tipos de doenças graves do fígado, rins e intestino. Mikolášek afirma ter tratado mais de 5 milhões de pessoas em sua carreira, muitos dos quais fizeram fila para esperar horas fora de sua casa, enquanto outros mandavam garrafas de vidro cheias pelo correio. Sua vida, vista no final dos anos 1950 e em flashbacks, é o tema do último filme da diretora polonesa Agnieszka Holland, chamado O Charlatão (Charlatan).

Cena do filme O Charlatão (Charlatan) – Foto: Divulgação

Mikolášek é interpretado já adulto pelo veterano ator tcheco Ivan Trojan, enquanto o filho do ator, Josef Trojan, desempenha o papel do jovem Mikolášek em muitos flashbacks. Pai e filho têm desempenhos incríveis e a experiente diretora cria uma tensão dramática, caindo lentamente em cenas do passado para explicar as motivações, sem telegrafar a direção da história. Conhecida pelo filme Europa Europa de 1990 (que tinha atriz Julie Delpy no elenco, a produção ganhou o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro e foi indicada ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado), a diretora Agnieszka Holland tem também muitos créditos na TV (incluindo Burning Bush, de 2013, para a HBO).

Mas o longa acaba tendo altos e baixos, O Charlatão (Charlatan) é bem-sucedido em muitos níveis, mas tem alguns problemas fundamentais. O filme tem algumas intenções grandiosas de mostrar um herói imperfeito que entra em conflito com um sistema totalitário corrupto. Mas esse também é o maior problema do filme. A história nunca foca para o problema que o longa impôs, independentemente de haver ou não algum valor em sua intensa observação dos frascos de urina e as poções de ervas caseiras. Em vez disso, ele é mostrado curando a gangrena de sua irmã com um bálsamo de folhas moídas, prevendo o dia exato em que alguém morrerá apenas olhando para eles e enfrentando um médico alemão e fazendo diagnósticos mais precisos.

Cena do filme O Charlatão (Charlatan) – Foto: Divulgação

A religião é minimizada, mas a certa altura Jan Mikolášek diz para um homem que está interrogando ele que a fé é metade da cura. A senhora (Jaroslava Pokorná) que ensinou Mikolášek enfatiza a importância da oração diária para o curandeiro e faz alguma menção aos dons divinos e à realização de milagres. As pessoas no filme que questionam se Mikolášek está fazendo mais mal do que bem com suas poções são agentes nazistas da Gestapo uniformizados e comunistas pró-Stalin. Isso faz com que Mikolášek pareça ser vítima de intolerância, mas ainda pede ao público para deixar de lado a ciência médica e aceitar a medicina popular baseada na fé como algo válido.

Grande parte do foco do filme é mudado para o relacionamento romântico de Jan Mikolášek com seu assistente, František (ator eslovaco Juraj Loj), que também não é qualificado em medicina. O relacionamento causa uma turbulência interna em Mikolášek, simbolizada no filme por ele se ajoelhar em pedras afiadas para orar após seu primeiro encontro romântico (relacionamentos românticos masculinos eram ilegais na Tchecoslováquia na época).

Cena do filme O Charlatão (Charlatan) – Foto: Divulgação

O assunto dos pacientes de Mikolášek também surge. O filme começa com a morte em 1957 do líder comunista tchecoslovaco Antonín Zápotocký que foi tratado por Mikolášek e isso acaba deixando-o sem nenhum amigo poderoso para protegê-lo. Mais tarde, é revelado que ele também tratou o líder nazista Martin Borman. Esta parece ser uma tentativa de retratar Mikolášek como um herói imperfeito que levou dons para tratar qualquer tipo de paciente.

A cinematografia e o design de produção são grandes vantagens para o filme. Nas cenas ambientadas na década de 1950, tudo é monótono e insaturado. Azuis e pretos predominam no esquema frio e a urina adiciona a única cor quente. Uma sensação claustrofóbica é criada frequentemente por ter algum objeto desfocado em primeiro plano, bloqueando uma visão adequada. Sombras nítidas criam uma aparência expressionista conforme Jan Mikolášek se mete em apuros. As cenas entre as guerras são mais vibrantes e coloridas, com verdes e amarelos e muito sol em vistas desobstruídas.

Cena do filme O Charlatão (Charlatan) – Foto: Divulgação

Dramaticamente, o roteiro de Marek Epstein por si só é inteligentemente construído, se deixarmos de lado as questões sobre a validade da medicina popular. No final o espectador poderá julgar os personagens principais sobre o que eles fizeram foi algo bom ou mal.

*Filme assistido na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, para mais detalhes, acesse: https://44.mostra.org/


Trailer:

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